quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Poema de Natal

por Vinicius de Moraes (1913-1980)




Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.


Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.


Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.


Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Tarot - XV. O Diabo

"E às vezes somos diabos para nós próprios, quando tentamos a fragilidade dos nossos poderes presumindo a sua potência volátil."

William Shakespeare (Dramaturgo inglês, 1564-1616)


"Mas é bem melhor ousar coisas grandiosas, obter triunfos gloriosos ainda que alternados com o fracasso, do que permanecer com os pobres espíritos que não gozam nem sofrem muito, porque estes vivem uma existência cinzenta que não conhece vitória nem derrota."

Theodore Roosevelt (Estadista e presidente norte-americano, 1858-1919)


Símbolos Básicos
Um demónio alado sobre um pedestal negro, duas figuras nuas (mulher e homem) presas por correntes, um pentagrama. Em alguns baralhos, uma montanha surge ao fundo.

A Viagem do Louco
O Louco segue o seu caminho após o encontro com um Anjo e a sua alquimia dos opostos (Ver Temperança). Surge no horizonte uma enorme montanha negra, governada por uma criatura meio-bode meio-deus. Junto aos seus cascos estão pessoas nuas, presas por correntes ao trono do estranho regente enquanto desfrutam de todos os prazeres terrenos: comida, bebida, sexo, drogas, ouro... A cena ameaça apoderar-se do Louco, que à medida que se aproxima do sopé da montanha sente crescer em si os seus desejos mais mundanos. Luxúria, obsessão, ganância. "Recuso submeter-me a ti!" grita ele para o Deus-Bode, que lhe devolve um olhar curioso respondendo "Limito-me a trazer à superfície aquilo que já existia dentro de ti. Não precisas temer os teus desejos, nem evitá-los ou sentir vergonha deles." O Louco fica ainda mais indignado, e apontando zangado para as pessoas acorrentadas, pergunta: "Como podes dizer isso, quando estes que aí se banqueteiam aos teus pés foram por ti escravizados?" O Deus-Bode imita o gesto do Louco, respondendo-lhe "Observa com mais atenção."


O Louco assim faz, e percebe então que as algemas que prendem homens e mulheres são suficientemente largas para serem removidas sem esforço. "Eles podem ser livres se o desejarem", diz o Deus-Bode. "Mas tens razão. Eu sou o deus dos teus maiores desejos. Estas pessoas foram escravizadas apenas porque se deixaram controlar pelos seus desejos mais básicos." E o Deus-Bode continua, apontando para o cume da montanha: "Não vês aqui aqueles que permitiram que as suas aspirações os levassem ao topo desta montanha. As inibições podem ser tão limitadoras como os excessos. Podem impedir-te de seguir a tua paixão até aos mais elevados objectivos. "


O Louco compreende a verdade das palavras do Deus-Bode, e também o erro de julgamento que cometeu. Esta não é uma criatura maligna, mas um ser com grande poder, do mais elevado e do mais subterrâneo, simultaneamente besta e deus. Como todo o poder, este é assustador, perigoso... mas se bem compreendido e utilizado, pode ser a chave para a liberdade e a transcendência. 



Notas interpretativas

A carta do Diabo é uma das mais incompreendidas entre os Arcanos Maiores do Tarot. Aqui, o “Diabo” não é o Satanás das religiões monoteístas, mas sim os deuses Pã ou Dionísius, com meio corpo de bode, que na Mitologia Antiga brincavam despreocupadamente por entre bosques e riachos, promovendo orgias de sexo e vinho entre humanos e seres mágicos. Pã ou Dionísius são a personificação do abandono aos prazeres da vida, do comportamento selvagem que busca exclusivamente a satisfação dos desejos imediatos. Não é por acaso que um dos símbolos do Diabo é o Pentagrama invertido: a submissão do espírito ao mundo material.

Regida por Capricórnio, a carta do Diabo fala-nos de ambição, mas também de tentação e dependência. A maior parte de nós aprende desde muito cedo que estes são temas a abordar com desconfiança. Ceder à tentação do sexo ou da comida é "mau", depender de álcool ou drogas é "mau", ser demasiado ambicioso é "mau" (“quem tudo quer tudo perde”, etc). A carta do Diabo alerta-nos para tudo isso: em todo o excesso que nos leva a perder o controlo há o risco de nos tornarmos dependentes de algo ou de alguém, de nos tornarmos escravos daquilo que mais desejamos. Ora o excesso de controlo pode também ser fonte de limitação, e por isso este Diabo capricorniano exorta-nos, paradoxalmente, a ceder aos nossos impulsos mais elevados, a não ter receio de investir numa ambição maior que nos leve a escalar montanhas em busca de algo tão extraordinário que não está acessível aos “esforçozinhos de média intensidade”, mas apenas às grandes conquistas.

Quando o Diabo surge numa leitura, o Querente pode estar a personificar um dos extremos do signo de Capricórnio: excessivamente ambicioso (do tipo que não olha a meios para atingir fins), ou excessivamente controlado (do tipo que não se permite viver nada demasiado intenso, demasiado apaixonante… demasiado ambicioso). O Diabo pode também referir-se a uma figura masculina com grande poder financeiro e/ou magnetismo sexual, alguém que é agressivo, controlador, ou simplesmente persuasivo. Não se trata de uma pessoa necessariamente “má”, apenas de alguém a quem é muito difícil resistir... Como na história do Louco, o mais importante com a carta do Diabo é compreender que, se existe algo que nos domina – um chefe, uma ambição, uma obsessão –, fomos nós que consentimos esse domínio. As algemas são suficientemente largas para nos libertarmos. Permanecemos aprisionados enquanto, consciente ou inconscientemente, assim o permitirmos. 

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Inv/ferno de Perséfone

Perséfone era filha de Zeus, rei dos Deuses, e de Deméter, deusa da Fertilidade. 
A sua mãe manteve-a sempre longe do Monte Olimpo e dos deuses que a desejavam (Hermes, Ares e Apolo), escondendo-a entre o mundo natural onde Perséfone cresceu bela e inocente. Certa vez estava Perséfone colhendo flores quando Hades, deus do Mundo Inferior, irrompeu por uma fenda na terra e levou Perséfone para os seus domínios. Desesperada com o súbito desaparecimento da filha, Deméter deixou de lado os seus deveres de guardiã da fertilidade e passou a deambular pelo mundo buscando a desaparecida Perséfone. O mundo natural perdeu a sua vitalidade e a fome e a escassez propagaram-se indiscriminadamente. Zeus decidiu então intervir, exigindo a Hades que devolvesse Perséfone a sua mãe. Havia no entanto um senão: Hades tinha convencido Perséfone a comer algumas sementes de romã, e pelas leis das Moiras (as 3 irmãs que decidiam o destino de deuses e homens), quem quer que se alimentasse no Mundo Inferior era obrigado a lá permanecer para sempre. Para cumprir com a vontade das Moiras e simultaneamente restituir a fertilidade à Terra, ficou então acordado que dali em diante Perséfone passaria uma parte do ano com Hades e outra parte do ano com Deméter. E foi assim que Perséfone se tornou a Deusa do Mundo Inferior, responsável pela sucessão das estações do ano, nas quais a Terra produz ou repousa.

A passagem de Plutão por Capricórnio tem-me relembrado o rapto de Perséfone. Plutão (identificado mitologicamente com Hades) traz consigo um profundo impulso para a transformação, e tudo o que toca é forçosamente purificado por uma viagem ao reino das Sombras interiores antes que possa voltar a encontrar algum tipo de Luz. Neste momento, os nativos de Capricórnio (sobretudo os que nasceram na última semana doano) sentir-se-ão como Perséfone, “arrancados” à identidade que foram construindo ao longo de muito tempo (o mundo natural gerido por Deméter) para uma inesperada viagem por aquilo que sempre recusaram aceitar em si próprios (o seu Mundo Inferior muito pessoal). Suponho que para o “capricorniano médio” isso implique revisitar os alicerces menos sólidos da sua estrutura identitária. Aquelas pequenas coisas que preferimos “varrer para debaixo do tapete”, por considerarmos indignas da nossa solidez mental e/ou inapropriadas para a nossa segurança emocional e/ou intoleráveis pelos nossos valores morais e/ou desadequadas aos nossos projectos de vida. Enquanto Perséfone é mantida no reino de Hades nada floresce, nada é produzido, e por isso também para quem de momento está sob o efeito da conjunção de Plutão ao Sol natal parece que nada avança exteriormente, ainda que a um nível mais profundo tudo esteja em ebulição.

O nosso Eu terá sido simbolicamente raptado por Hades, e onde antes tínhamos certezas encontramos agora apenas dúvidas. Os aspectos da vida em que isso será mais evidente podem ser encontrados na casa onde se encontra o Sol de cada capricorniano. É nessa casa que estabelecemos a sede do nosso ego, são esses temas as matérias-primas essenciais com que sempre construímos os alicerces da nossa identidade. Que combustível tem alimentado o motor da vossa revolução interior, meus bravos companheiros capricornianos? Problemas financeiros? Dificuldades de relacionamento com familiares próximos, ou com amigos? Desilusões amorosas? Se tiverem Mercúrio antes do Sol, a vossa mente racional irá preceder o vosso ego na descida aos Infernos de Hades, e talvez isso ajude a compreender melhor o que se está a passar. Sim, fomos raptados. Não, não é o fim do mundo.“Aquilo que o Casulo diz ser o Fim, o resto do Mundo chama Borboleta” (Lao Tzu).

Um detalhe do mito de Perséfone pode inspirar-nos. Hades deu-lhe a comer sementes de romã, o fruto que desde a Antiguidade simboliza o conhecimento esotérico mais secreto. Ainda que potencialmente dolorosa e certamente catártica, esta imersão nos aspectos mais sombrios do nosso ser dar-nos-á conhecimento precioso que em circunstâncias normais nos é inacessível. Conhecimento sobre nós, sobre a verdadeira natureza da nossa interacção com os outros e com o mundo.

O que realmente nos move nos nossos sonhos, nas nossas conquistas e derrotas? Que alicerces são fundamentais à nossa estrutura interna? Em que pilares falsos nos temos vindo a apoiar inconscientemente, negligenciando o caminho que a nossa Alma escolheu percorrer nesta Vida? Este é o conhecimento secreto com que nos podemos alimentar durante o “cativeiro”, durante os longos meses de Inverno que atravessamos. Quando finalmente regressarmos à superfície, não mais seremos os mesmos. E, como Perséfone, voltaremos a repetir a viagem ao Mundo de Hades de quando em vez, sempre que as respostas superficiais não forem suficientes para saciar as inquietações que irão surgindo na construção do nosso Eu. É que as sementes da romã (como as do conhecimento secreto de nós mesmos) são deliciosas, e quando aconchegadas na Terra sob a luz do Sol podem gerar árvores vigorosas, belíssimas flores e magníficos frutos.