A maior parte dos nossos dias tem uma cadência previsível. Com muitas possíveis variações, essa cadência inclui sono e vigília, comer e tomar banho, trabalho e repouso. A rotina é alvo frequente de queixume geral - diz que abafa a criatividade, mina a espontaneidade, arrefece a paixão e até causa indigestão se ousamos experimentar algum pitéu mais arrojado.
Mas se o ter rotinas é algo tão vulgar no comportamento humano, é porque elas são absolutamente necessárias. Em primeiro lugar, há algo de profundamente reconfortante em tudo o que é previsível e ritualístico. Por um lado, sabemos quando e como vai ocorrer aquele pedacinho do nosso dia (é previsível). Depois, estamos lá nós a assistir ao pedacinho, ou a fazer acontecê-lo. É uma espécie de ordem premeditada que nos torna produtivos e eficientes.
E não é por acaso. Qualquer organismo vivo se constroi sobre rotinas. A das reacções bioquímicas ao nível da célula, da multiplicação e morte das células, dos órgãos em perfeita sintonia de funções uns com os outros... Pois se até o batimento cardíaco obedece à rotina de um ritmo...! Em termos estritamente biológicos, a vida não é possível sem uma grande dose de previsibilidade - afinal, o que são as células cancerígenas senão entidades demasiado "espontâneas"...?
Astrologicamente, a nossa relação com a rotina pode ser analisada a partir da casa VI do mapa astrológico. O signo onde começa esta casa e os planetas que aí estão mostram o grau de rigidez das nossas rotinas, de que modo nos organizamos e como funcionamos em organizações hierarquizadas (principalmente o local de trabalho). Com afinidade natural pelo signo de Virgem, a casa VI reflecte também o relacionamento que temos com a saúde, com o bom ritmo das rotinas do nosso organismo. E de uma forma mais abrangente indica como aperfeiçoamos a nossa capacidade de actuar com eficácia e utilidade no mundo real - ou seja, o nosso trabalho.
Foi Carl Jung quem há muito tempo argumento que o mundo da matéria (Terra) estaria naturalmente oposto ao mundo da intuição (Fogo) - ou pelo menos a nossa percepção humana assim os colocaria, em extremos opostos. A velha discussão entre rotina e criatividade é um bom exemplo deste aparente conflito. Afinal, qualquer pessoa sentirá que quanto mais sobrecarregada é a sua rotina, quanto mais se vê forçada a cumprir horários e tarefas, menos disponibilidade mental e emocional tem para expressar o seu lado criativo, intuitivo, espiritual.
E assim passamos pesados dias a fio, como se o fardo das nossas responsabilidades quase nos enterrasse a cada passo que damos no fiel cumprimento das rotinas que atribuimos a nós mesmos. Alguns sentirão mais do que outros a falta de espaço/tempo para ser espontâneo, para não ter de seguir nenhum roteiro predefinido e obedecer apenas ao impulso do momento. Mas parece-me que, consciente ou inconscientemente, todos sentimos falta disso, nem que seja uma vez por dia.
É nessa altura que, desviando-nos do que quer que estávamos a fazer, acabamos por ir parar ao e-mail, ao Facebook ou ao YouTube, ou em frente à TV a ver uma ficção qualquer. A nossa sede de criatividade leva-nos a fugir de rotinas demasiado sobrecarregadas. Não que os nossos destinos de escape sejam fonte de esfusiante êxtase, antes pelo contrário. Adormecem, anestesiam, fazem com que a rotina se torne um pouco menos penosa, um pouco mais suportável.
Nada de mal nisso. Mas porque não conciliar rotina e criatividade? Afinal, sem rotina não há como tornar real o impulso criativo, e sem criatividade a rotina torna-se estéril, auto-limitada. Olhando mais profundamente o signo de Virgem, encontramos o conceito de "ritual", e ritual não é apenas uma coisa que se faz repetidamente, previsivelmente. Não é mais uma rotina. Ritual é qualquer coisa de sagrado. São gestos simples que trazem a nossa consciência para o momento presente, resgatando-a de arrependimentos passados (ai que me esqueci de ir à lavandaria!) ou de preocupações futuras (ai que ainda tenho de passar no supermercado!).
Enquanto vivemos apenas o momento presente, assistimos à presença de qualquer coisa transcendente no plano material. Escovar os dentes não é apenas escovar os dentes: é sentir a escova nas gengivas, o sabor do dentífrico nas papilas gustativas, a mão que segura a escova e os músculos do braço que se contraem para realizar os movimentos necessários à escovagem. Que milagre, existir tal coisa como papilas gustativas, e músculos, e gel dentífrico. E que eficiência todo este ritual demonstra em obter dentes mais limpos. Mais sãos.
Se o Universo tende a gerar caos (interpretação criativa da 2ª Lei da Termodinâmica ;-), nada existe de banal no acto de criar ordem, muito pelo contrário. Rotina, saúde, organização, trabalho... são tudo expressões de um ritual muito especial, que é o de trazer ao plano material os inspirados impulsos que nos dá a nossa criatividade. Dar-lhes forma, estrutura, ordem. À nossa maneira (leia-se "escala") somos todos como pequenos deuses, intervindo em cada instante para aperfeiçoar aquilo que já existe ao mesmo tempo que criamos algo de novo.
Experimente então transformar algumas das suas tarefas diárias em momentos solenes. Só por um instante, concentre-se apenas no que está a fazer. Ligue os seus cinco sentidos à finalidade da tarefa (este gesto de escovar os dentes vai tornar o meu corpo mais limpo, mais saudável). E no final, sinta-se grato por ter dedicado o seu esforço a um Universo mais ordenado. O Universo, certamente, agradece-lhe.
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