Normalmente somos apresentados a novas pessoas pelo nosso nome próprio e pela nossa profissão, mesmo quando não estamos em contexto profissional. Numa conversa mais alargada, podemos dizer que somos pais/mães, tenistas amadores ou membros da associação recreativa lá do bairro. Este tipo de informação faz parte não só do cartão de visita que mostramos ao mundo, mas também do rótulo que aplicamos a nós mesmos: um rótulo com informação diversificada, mas ainda assim um rótulo único, indivisível, minimamente coerente.
Na verdade, a coerência que nos esforçamos por ostentar não reflecte, nem de perto nem de longe, a realidade do que somos. Frases como "chamo-me Zé e prefiro preguiçar ao fim-de-semana em vez de ajudar com as compras da casa" não são aceitáveis como rótulo próprio nem causam boa impressão (mesmo em contexto de flirt pouco eficaz!). Mas nem por isso deixam de reflectir uma parte do que somos.
Nas palavras de Fernando Pessoa, "Eu sou Muitos".
Se observarmos com alguma distância o nosso próprio comportamento, rapidamente chegamos à conclusão que esses "Muitos" se vão alternando ao longo do dia. Às 7h da manhã, sou quem adora preguiçar e se pudesse não trabalharia nem mais um dia...! Às 10h da manhã, sou profissional super-eficiente. À hora do almoço, sou expressiva e cativante num encontro de negócios. Ao final da tarde, sou eremita que anseia por regressar à "caverna". E assim por diante...
Pelo meio, surgem outros "Muitos" aqui e ali. Sou a colega invejosa que detestou saber da promoção de outro. Sou a empregada submissa que não foi capaz de dizer não ao pedido absurdo do chefe. Sou a mulher insegura que liga para o escritório do marido quando este diz que vai trabalhar até mais tarde. E muitos outros "Muitos" que a maioria de nós prefere varrer para debaixo do tapete. (Imagine-se o ridículo a que estes "cartões de visita" nos exporiam...!)
E no entanto cada um de nós é mesmo Muitos, sem hipótese de a eles fugir. Como um espelho que estivesse partido em vários pedaços. Alguns fragmentos são maiores, ocupam o "lugar do condutor" do nosso ego durante mais tempo. Outros são mais pequenos, representam aqueles rasgos imprevisíveis que lá muito de vez em quando nos assaltam ("Chiça! Nem parecias tu!"). Mas a distinção mais importante será a que fazemos quanto ao reflexo que nos devolve cada fragmento: algumas partes do espelho são luminosas, mostram-nos como gostaríamos de ser o tempo todo; outras partes são escuras e sujas, nelas vemo-nos feios e esquisitos, preferíamos que não existissem. Então colamos os fragmentos de que mais gostamos (os maiores e mais luminosos), e tentamos esquecer que os restantes existem.
Astrologicamente, encontramos os diferentes "pedaços" de quem nascemos para ser representados nos planetas do nosso mapa de nascimento. Imagine que cada pedaço-planeta era uma pessoa, e que todas estas pessoas estão reunidas em permanência, algures dentro de si, para determinar os seus objectivos, as suas emoções, os seus recursos..., e como você se vai comportar em cada segundo que passa.
O Sol é o moderador da reunião, a Lua a anfitriã, Mercúrio o estratega, Vénus a diplomata, Marte o lutador, Júpiter o empreendedor, Saturno o velho do restelo, Quíron o transgressor ferido, Urano o génio excêntrico, Neptuno o romântico sonhador e Plutão o poderoso obscuro.
O signo em que cada planeta se encontra mostra como ele desempenha o seu papel: Mercúrio em Virgem é um estratega que se preocupa com os detalhes, Mercúrio em Sagitário será um estratega que olha em primeiro lugar para o significado maior do plano. E os aspectos entre os planetas (os ângulos entre as suas posições) reflectem a natureza da sua interacção. Marte pode ser um excelente braço-direito do Sol, ou um rufia que tenta impor-se na reunião desafiando a autoridade do moderador.
E assim a análise de uma mapa astrológico ganha vida, e assiste-se em cada pessoa a uma peça de teatro original, complexa, interminável. Começa-se a compreender os Muitos de que é feita aquela pessoa, como esses Muitos interagem entre si e de que forma seria possível tornar as suas reuniões mais harmoniosas, mais produtivas. Afinal, quem quer ter um planeta amuado dentro de si, conspirando e sabotando porque foi rejeitado e não sabe de que outro modo actuar para ser escutado e integrado...?
Porque o espelho de quem somos buscará sempre o retorno à forma integral, completa. Para que isso aconteça, todos os pedaços devem ser incluídos - mesmo aqueles que à partida parecem "estragar" a nossa auto-imagem. Os Muitos que somos - e os planetas que os representam - anseiam por uma espécie de esquizofrenia democrática em que todos têm voz, todos oferecem algo ao debate, e o produto final reflecte o consenso da maioria sem abafar as legítimas necessidades de ninguém.
Se somos Muitos, tenhamos a autenticidade de os sermos Todos.
Se faço estas análises de um modo lasso e casual, não é senão porque assim retrato mais o que sou.
De uma análise propriamente profunda não só sou incapaz, mas sou também artista demais para a pensar em fazer; pensar em fazê-la seria pensar em dar de mim a ideia de que sou uma criatura disciplinada e coerente, quando o que sou é um analisador disperso e subtilmente desconcentrado.
A minha arte é ser eu. Eu sou muitos. Mas, com o ser muitos, sou muitos em fluidez e imprecisão.
Fernando Pessoa, in 'Reflexões Pessoais (1930)'
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