domingo, 5 de abril de 2009

Comentário a'O Dever de Crowley

"É preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante." 

Friedrich Nietzsche (filósofo alemão, 1844-1900) 

in Assim Falou Zaratustra


Antes de mais, agradeço ao Léo os comentários (e que venham mais! ;-) Como ambos mereciam uma cuidada resposta, cá vai a primeira.

A palavra “thelema” é de origem grega, e pode ser entendida como um substantivo, “vontade” (=will), ou como um verbo, “querer” (=to will). Nos primeiros escritos cristãos, essa palavra era utilizada como referência à vontade de Deus ou à vontade do ser humano. Na obra Gargantua e Pantagruel, do francês seiscentista François Rabelais, a Abadia de Thelema vive de acordo com uma única regra: “Fay ce que vouldras” (=”Do what thou wilt”, “Faz o que quiserdes”). O mote foi utilizado mais tarde, no séc. XVIII, pelo restrito Hellfire Club, um grupo de espaços exclusivamente frequentados pelas figuras mais destacadas da sociedade londrina.

Em 1904, Aleister Crowley recupera a palavra Thelema como designação para o sistema filosófico e místico que viria a desenvolver em diversas obras (a começar pel’ O Livro da Lei), numa síntese muito personalizada do Ocultismo, Misticismo Oriental e Misticismo Ocidental (sobretudo a Qabalah). Grande parte da obra de Crowley versa sobre temas relacionados com a “sua” Thelema. O “Dever”, como “Liber Oz” e “Liber II”, referem aspectos da conduta individual a seguir por todo o adepto da Thelema, embora o próprio Crowley abominasse qualquer tipo de ética formal:

 

"There are no "standards of Right". Ethics is balderdash. Each Star must go on its own orbit. To hell with "moral principle"; there is no such thing."

(in Liber AL vel Legis)


Não existem “padrões do Bem”. Ética é non-sense. Cada Estrela deve seguir a sua própria órbita. Para o diabo com o “princípio moral”; não existe tal coisa.


O Dever divide-se em quatro grandes temas: O Dever para consigo próprio; O Dever para com os Outros; O Dever para com a Humanidade; e O Dever para com todos os Seres e Coisas.

E agora os comentários:

A. O Dever para consigo próprio

Crowley defende que cada indivíduo se coloque no centro do seu próprio Universo. Pode parecer egomania, mas não é. Na ausência de uma verdade absoluta na qual possamos acreditar sem qualquer margem para dúvidas, aquilo com que cada um de nós conta é consigo próprio. Cada um de nós é um milagre que merece ser descoberto, cujas qualidades devem ser exploradas e desenvolvidas, criteriosamente analisadas e equilibradas umas em relação às outras. Não faz isto todo o sentido? Como podemos aspirar a ser pessoas válidas e felizes se vivemos na ignorância do nosso próprio Eu? A maior viagem de todas é a da auto-descoberta, e por isso o seu objectivo deve ser colocado acima de tudo, no centro do Universo, quer chamemos esse objectivo de “Eu”, ou de “Alma”, ou de qualquer outra coisa. “Contempla a tua própria Natureza”, prossegue Crowley. “Encontra o teu propósito, estende o domínio da tua consciência”: consequências naturais do auto-conhecimento. E finalmente, “não permitas que o propósito de outro Ser interfira com o teu, não reprimas os verdadeiros instintos da tua Natureza, e rejubila!” Confia em ti próprio, aceita-te como és, e admira o milagre que és tu e a tua vida. “Remember all ye that existence is pure joy”. Há como contrariar isto? 

B. O Dever para com os Outros

Se dúvidas houvesse quanto ao “egoísmo” hipoteticamente manifestado na parte A, aqui Crowley desfaz as dúvidas. O Amor acima de tudo, o Amor que destrói a ilusão da separação entre nós e os outros, entre nós e tudo o resto. “Se preciso for, lutai como irmãos, provai o mérito das vossas posições pelo confronto de energias criativas.” Que mal há num pouco de “competição saudável”? Muito se pode aprender com a discussão de argumentos, muito mais haverá para encontrar naqueles que discordam de nós do que naqueles que a tudo dizem “sim”. Não interferir com o propósito dos Outros: porque seguir a própria Vontade não implica fazer TUDO, mas ser livre respeitando a liberdade alheia. Se outra pessoa sentir dificuldades em compreender-se, pode ser ajudada, especialmente se a sua ignorância a impede de compreender o seu verdadeiro propósito. Mas com cuidado, usando de bom senso e muita experiência. “To influence another is to leave one's citadel unguarded; and the attempt commonly ends in losing one's own self-supremacy.” E finalmente, como antes reconhecemos a nossa perfeição individual, devemos também reconhecer a perfeição do Outro. Cada homem e cada mulher são uma Estrela. Cada pessoa é o centro de um Universo, cada um desses Universos absolutamente único e nada comparáveis entre si.

C. O Dever para com a Humanidade

D. O Dever para com todos os Seres e Coisas

Aqui é que a aplicação da Thelema se começa a complicar… Não me parece que se trate de Anarquia per si, porque seria sempre necessário algum tipo de organização para que as coisas práticas funcionassem. Mas se um Governo funcionar de forma tão racional como pretende Crowley que todos nos “funcionemos”, o que pode correr mal? Não sei, mas vou continuar a pensar nisso… mesmo que nada de significativo pudesse correr mal, para lá chegarmos seria preciso uma emissão “thelemática” em simultâneo para “sintonizar” as cabeças de muitos seres humanos. Parece lavagem cerebral? Sinceramente, e dum ponto de vista estritamente prático, não vejo outra solução ;-) Ainda assim, e num exercício de pura especulação utópica, seria interessante viver numa sociedade de homens e mulheres livres, genuinamente empenhados no seu “dever crowliano”, para consigo próprios e para com os outros. Seria de facto extraordinário viver num espaço com tantos graus de liberdade, em que cada indivíduo fosse suficientemente racional para escolher os seus próprios “dogmas”, sabendo que de verdades relativas se tratam e nada mais… Viver observando cada milagre da existência, e tendo a oportunidade de partilhar todas essas experiências únicas com outros indivíduos, também eles entusiasticamente empenhados na sua própria viagem.


Do what thou wilt shall be the whole of the Law.


PS- Aguardo os vossos comentários ;-) 

4 comentários:

  1. Olá minha querida,

    antes de mais quero dizer que estas pequenas pérolas que deixaste fizeram-me compreender a minha grande identificação com o Crowley (tenho de começar a ler os livros dele, coisa que nunca fiz!). Talvez pelo seu tarot tudo o que aqui está exposto é a base do meu caminho espiritual. Muitas vezes fui "criticada" por ser como sou, colocar o meu auto-conhecimento como algo principal, acima de tudo e de todos. E por ser assim, arrepiam-me as pessoas que dizem de plenos pulmões "O meu caminho é ajudar os outros!", mas isto merece uma explicação :)
    Quando queremos ajudar alguém, dando o que temos dentro de nós, é ou não primordial que saibamos o que há dentro de nós antes de dar? Para fazer seja o que for ao outro, eu tenho o dever de o ter feito a mim primeiro e é por isso que quando encontro pessoas que colocam os outros antes de si, me causa arrepios. Respeito acimo de tudo, pois também eles têm a liberdade de escolher o que querem ser e fazer, mas não me critiquem depois, por eu fazer e ser diferente.
    Acho que alguns dos princípios do Crowley, em particular estes três, seriam muito úteis nos tempos que correm.

    Esta semana temos a Estrela, estarei mais atenta ao mestre Crowley e ao que tenho para aprender com e sobre ele.

    Beijos grandes e espero que esteja tudo bem por aí!

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  2. Como a Shin Tau bem falou.

    Devemos conhecer a nós mesmos primeiramente (O dever para consigo)para ajudar os outros (O dever para com os outros), e assim teriámos uma sociedade Thelemica (O Dever para com a humanidade), sem deixar de ignorar aqueles que não sigam tal filosofia (O dever para com todos os seres e todas as coisas).

    Confesso que quando eu lí a página de tradução que tu gentilmente me enviaste por e-mail, eu acabei por desmistificar muito do que eu ouvia falar do "depravado" Mr. Crowley (Música do Ozzy).

    Me identifiquei demais com a Thelema de Crowley.

    O Homem deve ser liberto em suas idéias, centralizado em sua fé particular (Hinduísmo), não deixando de respeitar o próximo e todas as outras coisas existentes (Zen-Budismo).

    Assim como a Shin Tau eu preciso comprar um livro do Crowley para assimilar as idéias deste ser utópico. Me identifiquei por demais.

    Nada disso teria acontecido se eu não tivesse adentrado o Nodo Ascendente.

    Direto do Brasil.
    Um grande abraço.

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  3. psiu...oh Medusa...

    chega lá no Grimoire, há uma prenda com desafio para ti!!! Por acaso estou bem curiosa sobre o que sairá das tuas mãos com uma pergunta daquelas!

    Beijocas e espero que gostes

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  4. "Com certeza LIBERDADE acima de tudo" A minha termina onde começa a sua e assim por diante. CROWLEY foi um desbravador da liberdade, da vontade e da independencia de cada ser humano. A Igreja, os Estados autoritários, as pessoas hipócritas, egoístas, invejosas que morram de raiva por saberem que no mundo existem seres que fazem juz ao seu CONTATO com o CRIADOR. "O seu próprio CÉREBRO"

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