Há algum tempo assisti a um programa de TV onde se discutia se e quando deve um casal começar a partilhar os seus momentos de... expulsão de gases intestinais (chamemos-lhe assim). Entre muitas e variadas opiniões, algumas pessoas defendiam a inviolabilidade do espaço nasal e auditivo do parceiro, afirmando ser uma questão fundamental de respeito mútuo a não emissão de substâncias gasosas de origem digestiva, com ou sem ruído associado.
Freud teria por certo interessantes bitaites e soundbytes a adicionar a esta questão, que tem muito mais significado implícito do que meros ditames de boa educação ou regras de etiqueta conjugal. A mim, fez-me reflectir sobre os conceitos de privacidade e intimidade na esfera dos relacionamentos afectivos.
No mapa astrológico, a casa VIII mostra o tipo de experiência vivemos quando contactamos intimamente com outra pessoa. O que é isso de "contacto íntimo"? É sexo, claro. Mas também o contacto entre vulnerabilidades, traumas passados, tabus. Neste verdadeiro "quarto de cama" astrológico, deitamo-nos com os esqueletos que costumam estar bem escondidos no armário, com toda a privacidade. E se deixámos alguém entrar? Acabamos por partilhar a cama com essa pessoa, mais os seus esqueletos.
E o inevitável acontece. Descobrem que temos rugas ou celulite, roupa interior desinteressante ou pijamas largos demais, que ressonamos, que nunca repomos o rolo de papel higiénico e que deixamos as peúgas sujas espalhadas pelo chão. Ah, e que temos gases mal-cheirosos.
Tudo isto faz parte do que se chama, sucintamente, a "rotina" do casal. Mas de início nada tem de rotineiro! Queremos agradar, queremos ser a melhor versão de nós mesmos. Que fazer então com todo o conteúdo da casa VIII? Foi lá que guardámos as humilhações da infância, a curiosidade sexual proibida na adolescência, tudo o que sempre nos recriminaram e proibiram, nos fizeram crer que era mau, sujo, imoral. Não deixes tudo desarrumado, não sejas gord@, não sejas porc@, não sejas indecente. E de repente está outra pessoa à porta do nosso quarto, espreitando para dentro, e que fazemos nós? Disfarçamos enquanto for humanamente possível, claro! ;-)
Mas não há intimidade sem partilha integral, verdadeira. E partilhar é, antes de mais, mostrarmo-nos vulneráveis. Aqui me tens, sou assim por dentro. Às vezes um espetáculo tristonho, patético, feio e incorrecto. Outras vezes, nem tanto. Ainda me queres? Ainda me achas dign@ de amor?
Claro que sim! A magia da intimidade é encontrarmos na outra pessoa tudo o que de tristonho, patético, feio e incorrecto tentamos esconder em nós. E por isso não posso evitar olhar com desconfiança para essas teorias que defendem uma "heróica contenção anal" para bem do relacionamento. Sem sangue, suor e lágrimas, vísceras e tudo, de que serve um relacionamento? Que desafios coloca? Que parte profunda de nós comove e transforma?
Desse estimulante tema televisionado, prefiro guardar o exemplo de um casal que celebra toda a demonstração de flatulência com um jocoso comentário humorístico. Estilo "Chiça, que até os sismógrafos em Pequim registaram esse abalo!" É sempre terapêutico usar de um pouco de Ar (leia-se, sentido de humor) para relativizar a importância às vezes exagerada de questões de Água (leia-se, emocionalmente densas). O riso partilhado pode fazer tanto ou mais pela intimidade do casal do que uma tórrida noite de amor. E ajuda a "quebrar o gelo" quando, deitados na cama com os nossos medos, convidamos a entrar o hesitante amante que espreita da porta dizendo-lhe "Queres ser meu cúmplice? Há sempre espaço para mais alguns esqueletos."